Naufrágio do Príncipe de Astúrias, em Ilhabela, completa 100 anos

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Cartão postal criado pela empresa que construiu o Príncipe de Astúrias

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O comandante José Lotina

REGINALDO PUPO

Ilhabela – Eram cerca de 4h da madrugada de 5 de março de 1916, quando centenas de passageiros pulavam descontraidamente o carnaval nos luxuosos salões do paquete espanhol Príncipe de Astúrias, um luxuoso transatlântico que havia zarpado de Barcelona, na Espanha, no dia 17 de fevereiro, com destino a Argentina. Antes, pararia em Santos, para o desembarque de 89 passageiros e 265 toneladas de carga.

Chovia torrencialmente e o cinza da tempestade contrastava com as cores e a alegria do carnaval. Quinze minutos depois, ouviu-se um forte estrondo e a alegria se transformou em desespero, agonia e morte. O navio, que realizava sua sexta viagem para a América Latina, sucumbia às águas do arquipélago de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, após chocar-se violentamente contra a única laje da temida Ponta da Pirabura, provocando um rasgo de 44 metros no casco. Foi à pique em menos de cinco minutos, não dando chance para quase ninguém sobreviver.

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A tripulação do Príncipe de Astúrias, que fazia sua sexta viagem à América Latina

A música deu lugar a gritos e aflição. Nas classes mais pobres, onde todos dormiam, o sono mergulhou no caos. Nesses cinco minutos, toneladas, e principalmente, milhares de sonhos, foram a pique. O Príncipe de Astúrias podia transportar até 1.890 passageiros, dos quais 150 na primeira classe, 120 na segunda, mais 120 na segunda econômica e 1,5 mil em alojamentos para imigrantes. Naquela madrugada, o navio navegava sob o comando experiente do ainda jovem capitão José Lotina. Neste curto período de tempo, 477 pessoas morreram, a maior parte delas presas aos escombros. Todos dormiam e os que conseguiram acordar, sequer tiveram tempo de abrir as cabines. Oficialmente o navio transportava 654 pessoas, sendo 193 tripulantes.

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Isidor Prenafeta, hoje com 81 anos, ao lado de seu avô Gregório Siles, que sobreviveu ao naufrágio

Curiosamente, o navio não fazia o caminho usual, ao largo das ilhas, mas passava perigosamente próximo à costeira, entre Ilha da Vitória e Ilha de Búzios. A escuridão reinava. Diante da pouquíssima visibilidade e da chuva intensa, Lotina ordenara o apito de sereia, destinado a alertar possíveis embarcações e evitar qualquer colisão. No passadiço, diante do clarão de um raio, viu um paredão rochoso bem próximo.

“É terra?”, perguntou Lotina para seus oficiais. Sem esperar a resposta, prontamente ordenou, no telégrafo: “Toda a força à ré, todo o leme à boreste!”. Nada mais podia ser feito. Vários estalos precederam duas grandes explosões, decorrentes do contato da água gelada com as caldeiras extremamente quentes, o que fez o navio partir-se em dois.

Neste momento, centenas de imigrantes e viajantes, em suas camas, morreram. Muitos dos que conseguiram chegar ao convés ainda com vida, perderam-se ao serem jogados contra as pedras. Os pedidos de socorro não puderam ser transmitidos, em razão da rapidez do naufrágio.

Passageiros clandestinos

Segundo depoimento dos sobreviventes à Capitania dos Portos de Santos à época, além das 654 pessoas, havia mais de 800 viajando clandestinamente, que fugiam da Primeira Guerra Mundial. O número de mortos, portanto, pode ter passado de mil. O que aumenta a dimensão e a tragédia deste desastre é o fato de que os 1,5 mil passageiros que viajavam no transatlântico não tinham registro, pois apenas os viajantes das classes mais sofisticadas tinham seus nomes cadastrados. Centenas de mortos nunca foram localizados ou identificados.

A maioria dos passageiros da primeira classe era formada por industriais que já eram radicados na América do Sul e viajavam a negócios. Além de passageiros, o Príncipe de Astúrias levava, dentre uma extensa lista de carga, 40 milhões de libras esterlinas em ouro destinadas a pagar alimentos e suprimentos fornecidos pela Argentina durante a Primeira Grande Guerra. Levava ainda a bordo 11 toneladas de ouro, que serviriam como lastro monetário para abertura de um novo banco. Essa carga valiosa nunca foi localizada.

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O interior do Príncipe de Astúrias

O que havia de mais valioso, culturalmente, eram nove estátuas em bronze. O conjunto era destinado a compor e finalizar o monumento de Los Espanholes, uma homenagem que a colônia espanhola na Argentina prestava ao centenário da independência platina.

Socorro aos náufragos

Pela manhã, poucas horas depois do desastre, o Vega, um navio francês que passava nas proximidades da tragédia, avistou sobre as águas vários destroços. Seu capitão ordenou a redução da marcha, quando constatou dois sobreviventes no mar. Iniciava-se assim o resgate de 143 pessoas que estavam à deriva e pelas costeiras. Curiosamente, este salvamento só foi possível graças ao mesmo fenômeno magnético, que alterou a rota do navio francês e fez com que ele se aproximasse do naufrágio.

Outro navio, o Patrício de Satrustegui, encontrou e recolheu vários corpos. Milagrosamente, muitos sobreviventes puderam ser amparados pelos caiçaras, dias depois, encontrados perambulando pelas matas. A dimensão do ocorrido motivou diversas ações de solidariedade e amparo, em Santos, São Paulo e Buenos Aires. Por várias semanas, corpos se amontoavam pelas praias do Litoral Norte. Na costeira da região do desastre, centenas de corpos foram recolhidos e sepultados em cemitérios improvisados, na Praia da Serraria. O cenário de destruição impressionava até os mais experientes

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Mergulhador diante dos destroços do navio

“Triângulo das Bermudas” brasileiro

A região onde naufragou o “Príncipe de Astúrias” é conhecida como o “Triângulo das Bermudas” brasileiro. Centenas de navios, alguns naufragados no século 19, foram à pique naquela região, possivelmente, pelo mesmo motivo. Atualmente existe no local um “cemitério” com mais de 100 embarcações naufragadas. O mergulhador, pesquisador e escritor Jeannis Platon, que fez 120 expedições ao Príncipe de Astúrias nos últimos 40 anos, explica que a região sul do arquipélago de Ilhabela possui forte onda magnética, que alterava as bússolas das embarcações, que eram o único instrumento de navegação à época.

“A agulha da bússola fica descompensada ao ser atraída por um dos minerais que compõem a ilha. A erupção de um vulcão há milhões de anos teria lançado radiação para a superfície, o que formou um campo magnético”, explica Platon. O Príncipe de Astúrias naufragou quatro anos após o Titanic, sendo considerado o segundo maior naufrágio do mundo pelas dimensões e número de vítimas, perdendo justamente para o Titanic, que teve 1,5 mil mortos.

Ator Herson Capri perdeu três parentes na tragédia

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Capri perdeu o avô e mais duas crianças

Ilhabela – O ator Herson Capri perdeu três dos cinco parentes que viajavam clandestinamente no Príncipe de Astúrias, fugidos da Primeira Guerra Mundial. Segundo ele, seu avô italiano Angelo Capri e seu filho de 13 anos conseguiram sobreviver. A esposa de Angelo e duas crianças não resistiram. Angelo  estava na cabine junto com a esposa e as crianças. Renato, de 13, estava dormindo em outra cabine.

“Era madrugada de carnaval, fim de festa. No navio, Renato acordou já com água na altura do joelho, no seu camarote, e saiu correndo para se salvar. Angelo e Sofia ouviram um barulho muito forte e sentiram um baque. Angelo disse que ia buscar os salva-vidas, abriu a porta e a água invadiu a cabine. Já no mar, meu avô agarrou uma criança que gritava ‘papa’ com sotaque espanhol, e ele a pegou pensando que podia ser uma das crianças dele, o filho de 6 ou 8 anos. Como era um bom nadador, nadou o resto da noite toda, com a criança nas costas, tentando se agarrar nas pedras para onde a correnteza o levava, mas não conseguiu por causa do limo. Ficou machucado nas mãos e nos braços. Ele dizia que chegou a enxergar algumas luzes muito fracas e muito distantes. Pela manhã conseguiu chegar numa praia. Verificou que a criança não era seu filho, ficou desesperado e tentou voltar para o mar na tentativa de resgatar alguém da família, mas os moradores da ilha o impediram. Depois se soube que era uma criança argentina que estava com a família a bordo e cujo pai também teria se salvado, ou em outra versão, a criança estava sozinha, filho de pais separados, estaria indo para Buenos Aires para ficar com a mãe”, relata Herson Capri.

Segundo o ator, a família agradeceu por carta o salvamento da criança e ofereceu ajuda ao meu avô para o que ele precisasse no Brasil. “Ele teria confundido o menino na hora do salvamento porque o seu filho também tinha sotaque espanhol, pois eles moraram nas Antilhas durante alguns anos”.

Ainda de acordo com Capri, o adolescente Renato também se salvou nadando e, na praia, conseguiu reencontrar o pai. “Meu avô perdeu a esposa, três filhos (um bebê, um menino de 6 ou 8 anos, e uma menina de 15 anos) e quase toda a sua fortuna no naufrágio”, afirma Capri, com base nos relatos de seu tio Renato, o adolescente sobrevivente. Angelo acabou se radicando em Curitiba e depois seguiu para Ponta Grossa.

O desastre com o Príncipe de Astúrias fez Herson descobrir que seu sobrenome, na verdade, é Capra, e não Capri. Atrás da história de seu avô, foi para Verona, na Itália, e conseguiu localizar o registro de nascimento na província de Sanguinetto, próximo a Verona, e seu registro no Exército. Os documentos traziam o nome de “Angelo Capra”, com os mesmos nomes dos pais e mesma data de nascimento. “Para que a família pudesse ter passaporte italiano tive que trocar todos os documentos, de todos, para Capra, inclusive os meus”.

Ilhabela prestará homenagem aos mil mortos na tragédia

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Jeannis Platon, que lança livro sobre o Príncipe de Astúrias em março

Ilhabela – No próximo sábado, 5 de março, quando se completará 100 anos do naufrágio, o mergulhador, pesquisador e escritor Jeannis Platon irá comandar uma procissão, liderada por um navio-patrulha da Marinha, até o local do acidente,  para prestar homenagens às vítimas. Diversas embarcações, que sairão de algumas marinas e do Yach Club Ilhabela, também irão participar. “Vamos colocar uma coroa de flores e um pastor irá realizar um ato religioso em memória dos mortos na tragédia”, conta Platon.

Isidor Prenafeta, de 81 anos, neto de Gregorio Siles, que trabalhava no navio como engenheiro elétrico e que se salvou da tragédia, sairá de Barcelona para acompanhar a solenidade marítima. Ele é autor do livro “El mistério de Príncipe de Asturias – El Titanic Español”, lançado na Espanha, país de origem do navio, e conta toda a tragédia em detalhes, com base em diversos depoimentos de seu avô, que morreu 34 anos depois do acidente. “Estou muito ansioso para participar da homenagem e já preparado emocionalmente para estar no exato lugar onde o navio afundou”.

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Isidor Prenafeta e Jeannis Platon

Jeannis Platon é o maior especialista do Principe de Astúrias no Brasil. Ele realizou mais de 120 expedições aos destroços nos últimos 40 anos. Seu primeiro mergulho foi em 1969. “Mas levei oito meses para localizá-lo, já que a região tem águas extremamente violentas e um mergulho ali exige extrema perícia e profissionalismo”. O navio está entre 18m e 42 metros de profundidade.

Em várias das expedições, Platon, a pedido da Marinha, resgatou uma das estátuas que estavam sendo transportadas para a Argentina. Atualmente ela está em exposição, restaurada, no Museu da Marinha no Rio de Janeiro. Diversas peças do navio, como pratarias, talheres e diversos objetos, estão expostos no Museu Náutico de Ilhabela. “O Príncipe de Astúrias tem muito mais histórias que o Titanic, pelos seus detalhes e mistérios”, revela.

Fascinado por mistérios, Platon dedicou um capítulo inteiro sobre o Príncipe de Astúrias em seu livro “Ilhabela e Seus Enigmas”. Após conhecer Prenafeta em Barcelona, onde visitaram o museu marítimo local para conhecerem a maquete oficial construída pelo estaleiro do navio, resolveu escrever um livro dedicado exclusivamente ao navio e que será terá seu pré-lançamento no dia em que a tragédia completará 100 anos.

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